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Cláudia R. Sampaio: uma mulher lírio entre margens e abismos

por Adriane Figueira
Foto de Luísa Machado para ilustrar o texto de Adriane Figueira sobre Cláudia R. Sampaio.

Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou seu primeiro livro, Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021. Voragem (Editora Folheando, 2022) é seu novo lançamento.


“Quem me dera viver somente em êxtase, fazendo o corpo do
poema com meu corpo, resgatando cada frase com meus dias e
minhas semanas, infundindo ao poema meu sopro à medida
que cada letra de cada palavra tenha sido sacrificada nas
cerimônias do viver.”
(Alejandra Pizarnik)

A poeta e artista plástica portuguesa Cláudia R. Sampaio (1981) faz anos nesse 1º de dezembro e cá estou para celebrar sua existência e seu mais novo livro de poemas. Neste 2022, ano com cara de fim do mundo, nós brasileiros resistimos com grande dificuldade ao horror e seguimos mantendo aquela centelha de esperança na rubra estrela que teimou em brilhar mais uma vez. Ainda bem! Eu sobrevivi de leituras e poesia, especialmente as literaturas produzidas por mulheres ao redor do mundo.

Foi durante o mês de maio que Cláudia rompeu o hiato na sua escrita e lançou em Portugal Uma mulher aparentemente viva (2022) pela Editora Porto, publicada pelo selo “Elogio da sombra” – organizado por Valter Hugo Mãe. Ele já havia reunido pelo mesmo selo uma antologia poética de Sampaio em 2019. Nas palavras de Mãe, em seu breve texto de apresentação, a poeta envereda pela força do milagre que a poesia desloca e movimenta aos que por ela se deixam envolver, estabelecendo uma intimidade incômoda, provocativa, quando partilha a solidão e o sonho.

Uma mulher aparentemente viva toma distância das outras obras de Cláudia R. Sampaio, pois aqui há outro pacto estabelecido silenciosamente com sua leitora, os cenários se movem dentro da casa de janelas abertas, no espaço doméstico do quase sono. Quando digo distância, quero apenas pontuar que aqui o desespero é outro, não é como aqueles encontrados em suas obras anteriores, encerrados em espaços claustrofóbicos de hospitais psiquiátricos. Nos versos deste livro, estamos dentro da intimidade da casa, cercada por móveis, paredes, plantas e gatas, deitadas com braços estendidos à espera de que alguém nos atravesse, nos suspenda com os olhos.


Quando, em 2016, li a edição brasileira de Homens que são como Lugares mal Situados do poeta português Daniel Faria (1971-1999), fiquei tão envolvida e comovida que fui marcando várias passagens, algumas com as iniciais C.R.S. que são as iniciais de Cláudia R. Sampaio. Já sabia da admiração de Cláudia pelo poeta, mas a surpresa foi observar que a epígrafe de Uma mulher aparentemente viva foi retirada de um dos versos que marquei na obra de Faria e que cito, em versão estendida, para não perder a beleza do gesto: “Acordei com as narinas a sangrar um perfume / Como um santo quando acaba de morrer / E debrucei-me para dentro / Para encontrar o golpe no sono.” (FARIA, 2016, p. 35)

Neste momento senti que realmente havia estabelecido uma ligação profunda com a poesia de Cláudia R. Sampaio e suas iluminações e referências. E como é bonito poder caminhar com o sustento desses versos dissipa(dores) dela, dele. Eu, eus, a outra, as outras — um espelho espatifado, um fio corrompido e um pássaro preso ao chão. É preciso mobilizar as asas e refazer o caminho. Sigamos!


No primeiro poema da obra, intitulado “Carta a mim mesma”, o eu do agora escreve para um eu do futuro, indefinido por excelência, em uma multiplicidade de eus, como uma mensagem que entoa o canto dos loucos que não sucumbiram. A mulher escreve para sua versão que ainda não é, compartilhando com o pássaro caído no chão do seu quintal a sede, a possibilidade de existir para além do delírio, resistir às quedas, à solidão dos dias: “[…] E espero que continues a escrever / Que sejas tu a terminar este poema que, no fundo, / ainda nem existe / esta assombração às avessas / esta insistência que persiste” (p. 23).

A mulher se equilibra, puxando o fio invisível à procura de alguma saída (im)possível e avança para fora do delírio, entrevisto durante o quase sono, que tenta a todo momento distrai-la, enganá-la com subterfúgios que a devolvem ao escuro, ao fundo do fundo do nada: “Eu sou, na minha mais plena exactidão, um escuro…” (p. 32). Há um espaço suspenso, uma rota de esfinge, a mulher que coroa o dia inapto, o amor prescrito.

Neste trabalho, a voz poética parte de um fora, à margem, uma entidade incorpórea, uma força que catapulta e arrebata o eu, para engendrar este espaço-mulher que é parte amplamente presente em suas pinturas, mas chega à superfície dos seus versos com maior desenvoltura e rigor, somente aqui, nas páginas dessa passagem-paisagem. A loucura e a solidão seguem sendo personagens centrais da poética de Sampaio, porém com desdobramentos diversos, mulheres despertas no escuro do mundo, sementes germinadas na terra, só de idas: “[…] o ventre são mulheres renascidas, / mulheres que não voltam, só de idas” (p. 55).

Em Uma mulher aparentemente viva os poemas são precedidos por um conjunto de imagens assinadas pela própria artista. Nessas ilustrações é possível notar um corpo de mulher-pássaro-peixe em meio à natureza, um corpo-palavra-navegante em solidão e descompasso, desdobrado em vozes que insistem em permanecer, na imanência do desaparecimento, da solidão vertiginosa. Há também as flores que sangram — renascidas, os altos e baixos da mulher-lírio em campo aberto — multiplicada: “[…] é preciso estar junto ao chão / para se subir em verdade e ver fundo / por vezes, temos de ser uma mulher / da cor de lírio, caída, / às avessas do mundo” (p. 59).

Leio a obra da poeta portuguesa e me deslumbro com a beleza contida na dor da mulher semi-desperta, na solidão de pássaro prestes a alçar voo. É ela, a mulher do presente que já é passado, é ela que fala com a mulher do futuro que apura a palavra e lapida o verso que ainda não existe, mas já está gestado em algum lugar, no espaço do sonho, da loucura lúcida que acomete o feminino desenhado na poética de Cláudia R. Sampaio.

Palavras-imagens repetidas, refletidas sobre a mulher aparentemente viva e seu corpo enunciado, inscrito, em devir e diálogo. A solidão navega na impossibilidade do pouso, há uma insistência no movimento de abrir os olhos e despertar para o mundo, mirando uma janela aberta que dá para a rua vazia, mas até quando?
A mulher acorda, se levanta dentro do sonho, da vida, em transe, dormente, no movimento paradoxal de incompletude, em um gesto tardio que insiste e se esboça, dentro da solidão inexplicável, inextricável, revela(dor)a: “[…] Repare que tudo continuaria a existir sem a sua presença / Também eu continuarei a existir sem a sua presença / porque aqui ficarei retida / à luz de tudo o que ainda não disse” (p. 64).

Feliz aniversário, Poeta!


Foto de Luísa Machado.


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O novo livro de Adriane Figueira está em pré-venda! Você pode adquirir cacos retidos na margem (Cachalote, 2024) na nossa loja virtual ou conferir os pacotes de recompensas na plataforma Benfeitoria.

Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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